Querida leitora,
Vivemos num mundo que ensina às mulheres a duvidarem de si (e o faz com muita habilidade), especialmente quando elas mais precisariam confiar em si mesmas.
Nos momentos mais vulneráveis. Quando o corpo muda, o sono some, o peito aperta, e tudo parece em suspensão. É justamente aí, nesse limiar entre o antes e o depois, que a sociedade sussurra com força: "tem certeza de que está fazendo certo?"
Este mundo que vende liberdade com uma mão e, com a outra, impõe regras invisíveis — mas rígidas — sobre como ser a "mãe ideal". São exigências que mudam com o tempo, mas nunca desaparecem, criando uma corrida constante, exaustiva e cheia de culpa:
Seja presente, mas não superprotetora.
Participe da vida escolar, mas não critique o sistema.
Volte ao trabalho logo, mas aja como se fosse tempo integral em casa.
Amamente o máximo possível, mas sem deixar de estar disponível, arrumada, produtiva.
Seja dedicada ao filho, mas mantenha o corpo, o humor e o casamento em dia.
Cuide de tudo — da criança, da casa, da carreira, das emoções — mas sem reclamar.
É um mundo que cobra entrega total, mas recusa-se a oferecer rede. Que celebra o “instinto materno” como se ele, por si só, fosse suficiente. E ignora a solidão que tantas mães experimentam no silêncio do cotidiano.
Ser mãe, nesse cenário, é mais do que cuidar.
É performar uma perfeição inalcançável.
É pisar num palco onde cada pequeno erro vira motivo de julgamento — externo, mas também interno.
E nesse esforço constante para corresponder, muitas mulheres se perdem de si.
Silenciam suas urgências.
Adiam seus desejos.
Desacreditam da própria sabedoria.
Como se sentir fosse um erro. Como se fosse preciso pedir desculpas por ser humana. Como se precisasse de ajuda para tomar toda e qualquer decisão sobre o seu maternar.
Mas a maternidade nunca foi — e nunca será — igual para todas.
A antropologia nos lembra disso. Pesquisadoras como Sarah Hrdy e Margaret Mead já mostraram como as expectativas sobre o que é ser mãe variam profundamente entre culturas.
Em muitas comunidades indígenas e africanas, maternar é coletivo.
Em sociedades ocidentais, é solitário, idealizado — e frequentemente, culpabilizante.
Essas diferenças nos dizem algo fundamental:
O que se cobra de uma mãe não é uma verdade natural. É uma construção cultural.
E é dentro dessa construção que tantas de nós tentam caber.
Talvez a verdadeira revolução comece quando uma mãe decide se escutar.
Mesmo que o mundo inteiro diga o contrário.
Quando ela entende que não existe mãe certa.
Existe mãe presente.
E que estar presente, às vezes, é apenas conseguir permanecer.
Inteira o suficiente para continuar amando — mesmo quando o amor também cansa.
Autenticidade começa na fresta do que é imperfeito: entre o que se espera e o que é possível
A filosofia existencial chama isso de autenticidade. A coragem de viver a partir de si — e não do “se faz” do mundo.
Heidegger dizia que, quando vivemos apenas no modo do “se faz” — como se todas as decisões já estivessem prontas para nós, seguindo padrões sociais pré-estabelecidos — nos afastamos do que é mais íntimo: nossa verdade.
A autenticidade, para ele, começa quando ousamos viver a partir de nós mesmas, e não das expectativas invisíveis que nos cercam.
Na maternidade, isso soa quase como heresia.
Mas talvez seja um chamado.
Ser mãe não é seguir um manual.
É habitar um corpo que muda.
Um coração que sente.
Uma rotina que desafia — e ainda assim, encontrar maneiras de cuidar.
De amar.
De permanecer.
Talvez o primeiro passo para voltar a si não seja grandioso.
Talvez seja silencioso:
Descansar sem culpa. Comer com calma. Dizer “não” sem se justificar. Pedir ajuda sem vergonha.
Acreditar no próprio jeito de fazer.
Confiar que ser suficiente é mais importante do que ser perfeita.
Acreditar e confiar em sí mesma.
Autoeficácia materna: a confiança que nasce de dentro
A sensação íntima de competência tem nome: autoeficácia materna.
Conceituada por Albert Bandura e adaptada à maternidade por estudiosos como Coleman e Karraker (2000), trata-se da crença da mãe de que é capaz de enfrentar os desafios cotidianos do maternar.
E o mais importante: essa crença pode ser cultivada.
Estudos recentes mostram que mães com níveis mais baixos de ansiedade apresentam maior autoeficácia para amamentar — especialmente nos primeiros dois meses pós-parto. A saúde mental tem se mostrado um dos pilares dessa confiança interna:
Quanto mais acolhidas se sentem em suas emoções, mais confiantes ficam em suas decisões.
Pesquisas também mostram que intervenções simples e práticas — como grupos de apoio, visitas domiciliares e aplicativos — têm aumentado significativamente essa autoeficácia, reduzindo sensações de fracasso e esgotamento.
São gestos que validam, escutam, acolhem. E é justamente disso que muitas mães precisam — mais do que conselhos, precisam de espaço para se escutarem.
A organização do cotidiano como uma aliada
A terapia ocupacional tem aprofundado esse olhar.
Estudos mostram que reorganizar as atividades do dia a dia com foco naquilo que faz sentido para a mulher — e não apenas no que é exigido externamente — é fundamental para restaurar autonomia e bem-estar.
Pesquisas aplicadas: pequenas práticas, grandes impactos
Mesmo em contextos específicos e complexos, como os de mães que enfrentam situações desafiadoras, a reorganização do cotidiano tem mostrado seu poder transformador.
Essas pesquisas nos ensinam que, mesmo nas condições mais difíceis, pequenas mudanças podem ter um impacto profundo no bem-estar e na autoeficácia.
O que muitas vezes parece uma simples adaptação, como redefinir prioridades ou ajustar rotinas, pode ser a chave para restaurar a sensação de controle, autonomia e equilíbrio emocional.
Pesquisas têm mostrado caminhos concretos:
Em oficinas de culinária para mães acompanhantes em UTIs neonatais, o simples ato de cozinhar em grupo foi capaz de resgatar um senso de normalidade e autocuidado
Mães de bebês de risco, ao reorganizarem suas rotinas no domicílio após a alta hospitalar, encontraram nas pequenas adaptações e na construção de redes de apoio o alívio necessário para seguir cuidando.
Mulheres em tratamento de câncer de mama que receberam orientações ocupacionais antes da cirurgia conseguiram planejar o apoio necessário para manter suas rotinas em casa, favorecendo a recuperação e reduzindo a sobrecarga emocional.
Grupos de terapia ocupacional voltados para mães de crianças com TEA têm promovido não só trocas e fortalecimento de redes, mas também momentos de escuta e autocuidado — elementos fundamentais na reconstrução do cotidiano e da autoestima.
Contudo, ainda há uma escassez significativa de estudos que abordem diretamente o planejamento de vida e a organização cotidiana voltada para mulheres na matrescência — essa fase complexa de transformação identitária que se inicia com a chegada de um filho.
O cotidiano da mãe, nesse contexto, ainda é muitas vezes investigado de forma fragmentada: pela ótica do bebê, da patologia ou da sobrecarga. Faltam pesquisas que olhem para a mulher como sujeito central dessa experiência.
E mais: que a ajudem a construir rotinas sustentáveis, coerentes com sua verdade e seu desejo de permanecer inteira.
O que tudo isso tem a ver comigo?
Talvez você pense: "mas eu não sou mãe de prematuro", ou "nunca estive em hospital, nem em grupo de apoio..."
E está tudo bem.
Esses estudos não são moldes. São lembretes.
O que podemos levar deles é o essencial:
Que o cotidiano pode ser reorganizado a partir daquilo que importa para você. Que autocuidado não é egoísmo — é recurso. Que você não precisa estar no limite para merecer descanso. Que pequenas decisões, feitas com consciência e presença, são transformadoras.
Essas descobertas nos dizem que há saídas possíveis, mesmo quando tudo parece demais. E que reorganizar o cotidiano com base naquilo que é significativo para você é uma estratégia tão prática quanto política.
Ainda que faltem estudos que abordem diretamente o cotidiano da matrescência, as pistas estão aí — e nossos corpos sabem o caminho.
A autenticidade não é algo que se conquista de uma vez.
Ela é construída, gesto após gesto, decisão após decisão.
Você não precisa mudar tudo hoje.
Só precisa começar se perguntando:
Isso é o que esperam de mim… ou é o que faz sentido para mim?
Esse é o primeiro passo.
Esse é o começo da presença real.
Esse é o recomeço — de você com você mesma.
Respire.
Seu corpo sabe. Sua história sabe.
E, no fundo, você também sabe.
O mundo pode tentar silenciar sua voz.
Mas a autenticidade é o caminho de volta para si.
Com carinho,
Gabi
Referências:
Townsend, E. & Polatajko, H. (2007). Enabling Occupation II: Advancing an Occupational Therapy Vision for Health, Well-being & Justice through Occupation.
Hrdy, S. B. (2009). Mothers and Others.
Mead, M. (1928). Coming of Age in Samoa.
Heidegger, M. (1927). Ser e Tempo.
Bandura, A. (1997). Self-efficacy.
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ALMEIDA, Beatriz Costa. A presença de crianças diagnosticadas com TEA em escolas: uma análise das práticas pedagógicas inclusivas. 2022. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2022. Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/bitstream/handle/11600/68709/TCC_Beatriz%20Costa%20Almeida_PDFA.pdf?isAllowed=y&sequence=6.
Puxa, como eu precisava ler esse texto!! Muito obrigada!